espiritualidade e vida cristã · ultimato · viagem

O aniversário de Áureo

Texto do mês, no blog jovem da Ultimato.

Confira!!!

O aniversário de Áureo

 

“- A única diferença entre eu e vocês é que minha roupa está suja – disse Áureo Angélico de Jesus, em pé, debaixo da marquise de um prédio próximo ao Ponto 7, um dos mais movimentados na noite de Porto Velho, RO.

Enquanto discursa sobre a vida, come o cachorro quente que lhe oferecemos e saboreia dydyo, um refrigerante da região, mais vendido que coca-cola. Tira do bolso da bermuda cáqui a carteira de trabalho que há muito tempo não usa. É seu único documento. Bate no peito ao contar que nasceu em Rio Branco, no Acre. Sua expressão muda ao lembrar-se de não ter ganhado nenhum presente de aniversário, no dia anterior.

Veio a Porto Velho por causa da mulher. A língua se embaralha ao falar dela e não consegue dizer coisas claras. Trabalha como guardador de carros e dorme em qualquer lugar. Fuma crack todos os dias depois da metade da tarde porque, segundo ele, as outras drogas não fazem nenhum efeito. O cabelo longo, a barba por fazer, um dos dedões do pé sem a ponta. De pé, na calçada, cinquenta centímetros acima do meu olhar, ele é o professor agora. Sinto-me diante de um mestre. Ele sabe do que fala. Não quer ir para uma casa de recuperação, porque não precisa ser recuperado. E o que precisa?

– Preciso ser transformado. Já estive em casas de recuperação. Fico lá um tempo, me recupero, volto gordinho, limpo e cheirosinho. Mas por dentro continuo a mesma pessoa. Quando chego à rua sou igual antes.

Falamos de Jesus. Ele conhece o assunto. Passou boa parte da vida na igreja e gostaria de estar numa agora.

– As pessoas me oferecem de tudo, bebida, droga, dinheiro, roupa, comida. Mas não me oferecem o que preciso de verdade. Eu preciso de ajuda. Não consigo sair sozinho. Outro dia passou aqui um desembargador e cuidei do carro dele. Lembrava daquele homem. Já tinha batido na porta da casa dele pedindo ajuda. Ganhei um pão mofado. Quando olhei pela janela, o cachorro estava comendo um grande pedaço de carne. Tenho que desabafar. Eu me sinto pior do que aquele cachorro.

É o trabalho de uma igreja local: distribuir abraços e comida para moradores de rua todas as quintas depois das 22 horas. Juntamo-nos a eles. Éramos quase trinta, divididos em pequenos grupos. Égon, 19 anos, lidera meu grupo. Fala com eles como se os conhecesse a vida toda e só depois pergunta seus nomes. Sabe quem são, não importa seus nomes. Chama-os capitães, chefes, comandantes. Homens sem identidade ganham títulos, são afirmados e abraçados por Égon. Áureo agora é, nas palavras e atitudes do rapaz, um representante do próprio Deus, um anjo, um profeta.

Sim, é impossível negar. Estou diante de um profeta, um profeta que não ganhou presente de aniversário.

– Tenho um presente para você!, apressa-se Égon. Vou orar. Posso?

– Sim, pode. É muito bonito o que vocês estão fazendo por mim, trazendo esse dydyo e parando para conversar. Sim, sim, ore, preciso de muita intercessão e a oração tem muito poder.

Enquanto oramos, chora muito. Está emocionado por poder comemorar duas vezes o aniversário.

– Sei que vocês não podem fazer muito por mim, mas posso pedir apenas uma coisa? -, diz, entre as lágrimas.

– Fala profeta!, é a resposta rápida de Egon.

– Se vocês voltarem aqui na próxima semana, tragam uma camisa limpa pra mim.

– Pode ser preta? Se pode ser, vamos ali do lado que deixo a minha com você e você me dá a sua. O que acha?, propõe nosso jovem líder.

– Não meu amigo, é um ato de muito amor de sua parte, mas não aceito. Volta aqui na próxima semana e me traz uma.

– E onde te encontro na próxima quinta?

– Vou estar aqui, no mesmo lugar, tenho certeza. Eu não vou sair daqui.

Queria abraçá-lo e dizer alguma coisa. Não fiz nada, não disse nada. Virei as costas tentando esconder as lágrimas e saí dali. Lembrei o que tinha entendido momentos antes: “Hoje você vai enxergar”. Enxergar dói.

Na semana seguinte, Áureo ganhou sua nova camisa”

Deixe um comentário